20 Abril 2023
"O que acontecerá com todas as pessoas inocentes reprimidas? Se o regime de Bukele não iniciar já uma política de reparação pelas violações de direitos humanos, se não acabar com o capitalismo extrativista selvagem e não desenvolver uma política de bem-estar que permita ao povo sair da pobreza, a situação vai explodir outra vez, pois para alcançar a paz, os fins nunca justificam os meios", escreve Carlos Soledad, em artigo publicado por El Salto, 17-04-2023. A tradução é do Cepat.
Quando recebi o pedido de El Salto para escrever um texto sobre a megaprisão de Nayib Bukele, fiquei entusiasmado. O escandaloso vídeo publicado pelo Governo salvadorenho mostrando a força de sua política de “guerra contra as gangues”, com imagens de prisões, comparadas a campos de concentração, não deixa ninguém indiferente.
Buscava depoimentos de pessoas do local, fugir do discurso das grandes ONGs. Em seguida, comecei a me documentar, li os relatórios da CristoSal e da Human Rights Watch, o portal alternativo Gato Encerrado e, é claro, o jornal digital El Faro, uma referência indispensável sobre a atualidade salvadorenha, especialmente interessante o editorial intitulado Sem maras e sem democracia.
Entrei em contato com várias amigas e conhecidas de toda a minha confiança, com vínculos em El Salvador. Eu tinha que escrever o texto antes que as pessoas parassem de falar sobre o tema. Surpreendentemente, os depoimentos e contatos demoraram a chegar.
Um amigo salvadorenho muito próximo, que mora fora das fronteiras de seu país, confirmou-me o motivo: “Posso ajudá-lo no que quiser, mas não posso me tornar visível, eu poderia sofrer represálias, há intervenção em tudo”. Por fim, encontrei outros contatos, todos fora do país, que incidiram na dificuldade em desenvolver o trabalho de defesa dos direitos humanos, a partir das organizações sociais.
De repente, o Centro de Confinamento de Terroristas, a joia da coroa do regime de Nayif Bukele, ficou em segundo plano. A situação é complexa, extraordinária e alarmante. O controle é total. Em março de 2022, vários meios de comunicação independentes haviam solicitado uma audiência com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o uso abusivo do programa espião Pegasus pelo Governo salvadorenho, com a finalidade de vigiar jornalistas e membros da sociedade civil.
Diferentes investigações destacaram, segundo Gato Encerrado, que os avanços na transparência da informação pública tiveram um grave retrocesso. Informações importantes sobre gastos, contratos, estatísticas e planos do Governo de Bukele são sistematicamente escondidas do escrutínio público, de forma alarmante.
Além disso, realizou-se uma reforma do código penal que permite que os meios de comunicação sejam penalizados, caso publiquem informações relacionadas a comunicados ou mensagens das maras, podendo sofrer penas de até 15 anos, algo que o Comitê de Proteção aos Jornalistas destacou como mordaças à informação. Como se não bastasse, CristoSal e HRW denunciaram vazamentos de informação que evidenciam abusos de poder em grande escala, durante o Estado de Exceção que já dura mais de um ano.
Não é possível entender o oportunismo e o sucesso da política autoritária de Bukele sem conhecer a história recente de El Salvador. Após 30 anos de guerra civil, em 1992, foram assinados acordos de paz que resultaram na chegada da democracia liberal, com a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que é a esquerda proveniente da guerrilha, e a Aliança Republicana Nacionalista (Arena), de direita, dividindo o poder. Esta época representou um período de amplas reformas militares, sociais e políticas.
No entanto, com o passar do tempo, nenhuma das duas tendências políticas conseguiu acabar com o flagelo da pobreza e a grave desigualdade, que foram o terreno fértil para a geração das maras, um poder alternativo e mafioso que passou a controlar grande parte da vida social e política em El Salvador.
Proveniente da FMLN, Nayib Bukele iniciou sua carreira política como prefeito de Nuevo Cuscatlán, de 2012 a 2015 e como prefeito da capital, San Salvador, de 2015 a 2018. No entanto, devido a conflitos internos, foi expulso da Frente e, em 2018, fundou seu próprio partido, o Novas Ideias. Finalmente, em 2019, alcançou a presidência de El Salvador, com a Grande Aliança para a Unidade Nacional (GANA) por maioria absoluta.
Desde sua campanha para a presidência, Bukele tem feito até o impensável para se diferenciar dos partidos tradicionais, chegando inclusive a desacreditar os Acordos de Paz. Referiu-se a este evento histórico como “um pacto de dirigentes decrépitos e dois partidos moribundos que buscaram a autoglorificação em benefício pessoal”.
A primeira coisa que o novo presidente fez ao vencer as eleições nacionais foi lançar seu Plano de Controle Territorial, que consistiu em colocar a polícia e os militares nas ruas para combater as gangues, as maras. Não obstante, esse plano, que diminuiu a taxa de mortalidade em 51%, foi criticado pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, porque evidenciou que a queda nas mortes ocorria, de fato, em razão dos pactos realizados entre Bukele e as gangues do crime organizado.
No entanto, o pacto foi rompido em março do ano passado, quando em apenas 48 horas as maras assassinaram quase 90 pessoas. E Bukele, que já havia invadido o parlamento em 9 de fevereiro de 2020 e havia tomado a Suprema Corte de Justiça, no dia 1º de maio de 2021, não teve qualquer dificuldade em declarar Estado de Exceção por 30 dias, que foi se estendendo e que, atualmente, é a política que domina a vida de forma totalitária em território salvadorenho.
Desde então, cerca de 65.000 pessoas foram presas e as garantias constitucionais foram suspensas. Por exemplo, quando uma pessoa é presa, não tem o direito de ser informada sobre o motivo da prisão, nem a um advogado. A apresentação diante de um juiz passou de 8 horas para até 15 dias ou mais. Houve intervenção nas comunicações. Foram denunciadas centenas de denúncias de prisões arbitrárias, que não foram atendidas por um sistema falido e houve uma restrição na circulação para vigiar a população por meio de cercos militares.
Paralelamente, foram estabelecidas reformas penais, a assembleia legislativa aprovou o endurecimento das penas, o decreto da figura de juízes sem rosto (ou seja, cuja identidade não é divulgada) e o julgamento de garotos como adultos. Também foram estabelecidas recompensas econômicas para aqueles que denunciam a participação criminosa de alguém de forma anônima, a reforma e censura aos meios de comunicação, incluindo a já mencionada pena de prisão de até 15 anos para meios de comunicação e jornalistas que informem sobre as gangues.
Neste contexto, agora, sim, entra a joia da coroa: a construção do Centro de Confinamento de Terroristas (Cecot), a maior prisão de segurança máxima do continente, com capacidade para 40.000 presos e que foi apresentada com uma inigualável exibição mediática.
Não podemos esquecer que Bukele se vende bem, tem experiência profissional como publicitário e sua política de mão de ferro o levou a alcançar um índice de aceitação de 80% a 95%, em diversas pesquisas. Espera-se uma vitória nas eleições salvadorenhas, em fevereiro do próximo ano, e nos países da região já se fala do fenômeno Bukele, com alusão à aceitação da política de mão de ferro pelas massas.
A Anistia Internacional indicou que a taxa de encarceramento per capita de El Salvador já é a maior do mundo, o dobro que a dos Estados Unidos por 100.000 habitantes. A política de mano de ferro já havia sido aplicada no passado pelos governos de Francisco Flores, no período de 1999 a 2004 e de 2004 a 2009, no entanto, as maras ressurgiram, inclusive mais fortes do que antes.
Parece que, segundo alguns especialistas, a mudança está na vontade política do presidente Bukele. “Antes, depois de três ou seis dias, saíam da prisão e já estavam massacrando novamente”. Além disso, o presidente conta, pela via dos fatos, com o controle ditatorial de instituições-chave como o Judiciário e o Legislativo para impor sua vontade.
O povo de baixo, por um lado, está hipnotizado e, por outro, maravilhado. Faz décadas que a violência não lhe permitia viver tranquilo. Não podiam andar pelas ruas para conviver com outros ou mudarem para outro município sem pedir autorização ou pagar às maras. Com o regime de exceção, as pessoas voltaram às ruas.
A maioria dos habitantes concorda que é uma pena que pessoas inocentes estejam presas, mas colocam em primeiro lugar a paz que agora vivem. Hoje, falar sobre violações de direitos humanos parece secundário para grande parte dos salvadorenhos, que se concentram em destacar a evidente melhora na segurança de um país que chegou a ser o mais violento do mundo e que agora se apresenta como o mais seguro da América Latina.
Bukele realmente acabou com as maras? É difícil garantir que todos os líderes estejam presos ou que não tenham fugido. Alguns apontam que o bukelismo passou a ser o principal comando das máfias, com as quais outrora negociava. Outros, como a organização Insight Crime, apontam que a estrutura está internacionalizada.
Só o tempo nos permitirá analisar completamente esta situação, mas, sim, facilmente seria possível imaginar um contexto como o que ocorre nos países ricos, onde a violência nas ruas é um assunto menor, porque o crime organizado é controlado pelas altas esferas, permitindo o fluxo de drogas e de outros crimes para essas sociedades.
Em consonância com as organizações sociais nacionais e internacionais independentes, é impossível não reconhecer a diminuição do crime, mas é lícito se perguntar por quanto tempo terá de se manter o Estado de Exceção, ou seja, até quando a população terá que viver sem garantias constitucionais? Está claro que o povo salvadorenho ponderou a situação e preferiu as milhares de prisões arbitrárias, dezenas de mortes e graves abusos nas prisões e nos processos judiciais do que a situação anterior.
Há, inclusive, pessoas que apoiam a política de mão de ferro, mesmo tendo familiares injustamente presos. É perfeitamente compreensível, pois escolheram o mal menor para escapar de uma situação apocalíptica que já durava várias décadas. Um grande respiro.
Lamentavelmente, é tudo fachada, porque as condições que deram origem à violência não desapareceram, cedo ou tarde, voltarão. Não pode haver capitalismo sem violência, o capitalismo é violência, porque há relações de opressão. De fato, neste momento, é o Estado que exerce a violência de forma monopolista, mas isso não vai ficar assim.
O que acontecerá com todas as pessoas inocentes reprimidas? Se o regime de Bukele não iniciar já uma política de reparação pelas violações de direitos humanos, se não acabar com o capitalismo extrativista selvagem e não desenvolver uma política de bem-estar que permita ao povo sair da pobreza, a situação vai explodir outra vez, pois para alcançar a paz, os fins nunca justificam os meios.
A paz é o caminho. E se o caminho não é democrático, é também violento. Se as organizações sociais independentes não firmarem um compromisso com os direitos humanos e a soberania econômica, a política de Bukele estará fadada ao fracasso.
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El Salvador de Bukele troca segurança por controle total - Instituto Humanitas Unisinos - IHU